domingo, 6 de abril de 2014

Eu não acredito que você não falou nada

Esperava aquele trem repetitivamente chato, com o apito de que pode entrar não pode entrar, eu entrei mesmo assim, apoiei direto em um canto qualquer, naquele mais um dia pesado imaginando quantos dias ainda eu entraria naquele trem, antes de partir da cidade ou do mundo, quantos dias mais viveria sem me ver inundar. Ergui a cabeça sem esperar que nada a segurasse firme, que nada preenchesse os olhos. Balbuciei um sussurro interno de espanto, aquele dos sustos o melhor deles, tinha um cabelo despenteado, com fios soltos numa dança quase proposital, escorrendo por um rosto que agarrou a alma num baque mudo dentro do peito, ali dentro, centro, ali. E fui acompanhando aquela roupa deliciosamente caída nos músculos, na proporção de um estilo sem propósito, alinhavado num corpo que não tinha falta, preenchia meus olhos e a alma, e a boca num grito contido, imaginando aquelas roupas escorrendo pouco a pouco, até dissolverem-se no chão do quarto em meio a risos altos incontidos e mãos conexas nos corpos, tudo se entregando até não haver mais como sufocar os gritos, os corpos, os músculos, as mãos, no descontrole do preenchimento, daquele do desejo, de partilha de um desejo dois, de um desejo que de tão dois é um. Com o celular, os olhos fixaram na tela enquanto um sorriso nascido ali cresceu até mostrar que alguma coisa tinha alegrado, o olhar comprimindo para encontrar o sorriso que só podia harmonizar aquele contexto todo, como se precisasse de mais harmonia naquilo tudo, no que minhas mãos queriam tanto alcançar e segurar sem parar, sem parar.
O tempo parou mas parou só pra mim, ou eu que nem queria imaginar o que seria se ele não parasse, perder tudo aquilo com um barulho, o apito pode entrar não pode entrar barrando a minha entrada naquele mundo a frente, todo um mundo a percorrer, mas o apito disse que podia sair, que já estava parado na plataforma. E ele saiu, sem que eu dissesse, sem que passasse qualquer nome, número, nessas paixões doídas de tão repentinas, do que podia ser e se foi.

sexta-feira, 7 de março de 2014

Qual era meu ser na sua falta?

Sim, toma, pega essas roupas, pode levar todas, inclusive as do corpo, porque se você vai o cheiro vai ficar, esse cheiro de suor de noites em claro e choros no escuro, sim, toma! Pode levar todas elas, pode rasgar, sujar, enterrar, mas, sim, toma tudo. Vou tirar tudo pra ver se o corpo fica livre, se a mente fica livre, se o coração sai da cela, sai do corpo, escorre.

Sim, toma, aproveita e leva com você toda essa louça, essa coisa partilhada, elas vão ficando por anos, nunca acabam, e o que nunca acaba tem história, tem memória, tem vida, então, sim, toma, leva essas taças, leva esses copos, leva tudo que sirva pra brindar nós, porque não tem dois mais.

Sim, toma, leva os lençóis, leva os entre nós, leva essa cama, olha pra baixo, vai ter os mesmos monstros de sempre, aqueles que são meus, os seus, o que viraram nossos, então, sim, toma, leva eles também.

Sim, toma, leva tudo, tudo que seja remetência, que remeta a você, tudo que é simbólico, sim, toma. Sim, toma tudo.
Sim, toma, que eu não quero mais você em mim.

Sim, toma, leva essa ilusão de que preencho a sua falta, deixa aqui a falta que me faz não ter mais função na sua falta.

Sim, toma.

Sim toma.

Sin toma.


Sintoma.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Cor de sangue

Naquela praça da cidade vazia um álcool, por favor, já que ou é isso ou encaro o que está muito aberto já. Vou cobrir de bebida, encher a boca assim costuro sons. Espera que preciso ligar, falar eu não sei bem o quê, porque não tem feliz pra desejar. Tira essa touca ridícula que me faz pensar que essas pilhas do relógio não acabarão nunca, quebra isso, vê se para de correr. Espera que preciso ver se ouço alguma coisa e paro de contar as horas porque não tem tempo de voltar, e não tem volta a tempo, então espera que já vou ligar, esqueci bem os números, mal inúmeros lembrei. Não, não lembro qual meu nome era mesmo? Esqueci pra não enlouquecer, mas lembrei enlouquecido que não adianta mais. E faltam dez minutos e não sei bem pra quê. Esse banco que sustenta o corpo vai quebrar, até a alma já pesou de pecados e eu não vou celebrar a vida porque não tem o que mais renascer. Tira esse saco de cor sangue, que isso são os presentes que cansei de não enxergar. Desliga essa música chata repetitivamente muda que vou explodir de lembrar o que não foi. Está nevando aqui por dentro e esse clima de alegria só me lembra o que a fantasia mentiu do passado de revira lixo, de lixo em lixo achando resto presente. Tira essa roupa cor de sangue e me dá teu resto e mais um copo de pinga porque a solidão não é festa e a rua ta cheirando a fogos de artifício sem ter o que comemorar. Não quero o teu chão, não me expulsa que a rua não é sua, seu fardado cinza com bastão. Não dói essa mão pesada, que aqui já tem história de pés na cara e murros na pele de vida em vida, na morte toda.

“Ele é um mendigo filho, não fica olhando”

Tranca esse espelho, joga a chave fora.
O que no outro diz de mim que olha, já pedi para amarrar essa venda mais forte.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Caco


Não dá ainda para encontrar, ainda não. Estão muito inteiros esses reflexos, é preciso quebrar até esfarelar tudo. Até transformar olhar em pedaços desconexos impossíveis de se encaixar.

Aguarda mais um pouco, ainda é preciso achá-los um a um e decompor todos eles. Quantos reflexos vou ter que destruir?
São de todos os tamanhos, estão em todos os lugares e não consigo, quebro demais, nasce demais. São muitos olhares nascendo e eu não quero mais olhar.

Já vou para esse encontro, aguarde um pouco que já vou. Ainda estão muito inteiros esses olhos para mim, é preciso triturá-los. Esmagar, esmigalhar, diminuir até amordaçar, porque não há coragem para olhar-se.

E então, quando todos os reflexos desse lugar estiverem em verdadeiros estilhaços que não mais se endereçam uns para os outros, que não mais podem se recompor numa dança cristalizada, vou ao seu encontro.

Para abrir a porta e te olhar.
Descobrir que de nada adiantou quebrar tudo. Transformar tudo em cacos.

O outro é o maior espelho.

domingo, 1 de setembro de 2013

Graxas, ternos e pães


Contratam-se e na aliança de escravidão, conversam sobre preços miseráveis. Pelo amor de Deus, me dá esse pão.

Ele agachado encaixa o suporte entre seu corpo e o chão. O suporte, vestido de graxa, aguenta a pressão de um corpo preso em um terno. O homem de terno, de pé, olha de cima o corpo embaixo que trabalha. Por Deus, dá logo esse pão.

Lá de baixo, são mãos, panos, escovas, ceras, tem que agradar, tem que agradar, pelo amor de Deus, tenho que ganhar esse pão.

Ele começa a suar enquanto passa o pano, sem parar, de um lado pro outro, de um lado para o outro, tem que lustrar, lustrar, lustrar. Dar brilho, nessa escuridão do sapato negro do homem de terno. Como se fosse possível fazer brilhar essa escuridão. Por Deus, me cede esse pão.

Acabou. Os olhos aos poucos se levantam. Encontram-se os olhos, de baixo a cima, de cima em baixo. Os de baixo pedem pão. Os de cima, analisam o serviço, a boca alongando-se, os olhos fixos nos pés, girando os calcanhares. É preciso analisar, analisar. Ver quanto vale um miserável que me presta um favor. “Hum, até que ficou bom.”

Então pelo amor de Deus, mesmo com esse desdenho, me dá esse pão?

Por Deus, devolve MEU pão.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Case-se!


Com seus seis delicados anos e um corpo que dançava no meio da sala sem repressão e sem vergonha, Heloísa era a criança mais nova da família.
Tinha um vestido azul bem vivo, e levava sapatinhos rosados, claros. Ela poderia, com sua dança, ser tudo o que quisesse. Assim, ela fingia ser as pessoas que tanto gostava, cantava como os grandes cantores e fazia os melhores dos passos que conseguia imitar dos bailarinos.
A voz, que entregava a idade, acompanhava a dança. A voz que não quebrava, saía sem muros...
Mas aquela era uma data especial para a família, e talvez fosse também para Heloísa. Sua prima mais velha iria casar-se! Primeiro a cerimônia religiosa. Depois, uma grande festa, como sugerem as tradições...
Então, Heloísa foi chamada na cozinha pela mãe da noiva. Escorregando o corpo leve sob a cadeira, viu, em cima da grande mesa de madeira, uma pequena e grossa fita branca.
Que fita é essa?
Heloísa, aqui, nessa fita, escreveremos, eu e você, o nome das mulheres da família que ainda não se casaram.
Mas, por que, tia?
Porque é uma simpatia: você escreve os nomes e amarra a fita na saia da noiva, para que as pessoas cujos nomes estão escritos também se casem.
Você vai por meu nome aí, tia?
Vou, para que, quando você crescer e se tornar uma linda mulher, você se case.
Heloísa ficou pensando sobre aquilo, enquanto a tinta preta espalhava-se por todo aquele pedaço branco. Queria perguntar: Mas todo mundo que é mulher tem que casar? Ela não entendia bem, mas decidiu esperar para perguntar para sua mãe sobre o assunto.
No final do dia, algumas horas antes do casamento, a mãe de Heloísa foi ajudá-la a se vestir.
Mãe, toda mulher tem que se casar?
Não Heloísa, só as que querem se casar.
Mas, eu tenho que me casar?
Heloísa, porque essa pergunta? Você só tem seis anos!
Sim, mas eu tenho?
Não tem. Você vai se casar se você quiser.
Mas acho que agora vou ter, mãe. A tia amarrou uma fita na saia da noiva, com os nomes das mulheres da família que ainda não casaram, disse que isso faz com que as pessoas casem. E ela escreveu o meu, mãe. E agora?
A mãe de Heloísa deu uma risada alta, achou o máximo a confusão infantil: acreditar que simpatias são obrigações que, lançadas a nós, não nos restam escolhas...
Filha, não é porque a tia escreveu seu nome na fita que isso vai acontecer. Escute, esse é só o desejo dela...

Heloísa ficou olhando para os olhos da mãe. Não entendia bem porque a mãe ainda estava rindo de suas palavras.
De qualquer forma, a resposta da mãe, cobriu, ao menos por um momento, aquela dúvida aberta.
Coberta que escondia uma grande questão: Quem dera que os desejos do outro fossem só os desejos do outro. Quem nos dera que as fronteiras entre o que é o desejo do outro e o que é o nosso desejo fossem tão bem desenhadas que não nos restassem dúvidas do que é nosso e do que é do outro.
Será mesmo que nossos atos ainda são frutos dos nossos desejos?
Ou que seguimos cegos, pela estrada construída, delimitada e traçada pelo desejo que nos precede, julgando-nos ainda, motoristas dos próprios caminhos?

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Rua sem saída


Sabia que tinha sido dias de pedra. Eu sabia que por um tempo ele tinha ficado preso numa gaiola, que sufocava seu viver. Eu sabia, a julgar pelos sons dos longos e doídos choros antes de deitar que sangrava muito.

E que eu não tinha os fios de sutura, tampouco sabia dar pontos.

Mas eu sabia que, ainda se soubesse, não haveria como tampar aquilo tudo. E sabia que essa inútil ilusão de cura para o desamparo nos persegue por todos os lados, por todas as estradas; talvez ele achasse que eu pudesse suturar as feridas sangrantes. Talvez eu também achasse que poderia. Insistimos em demandar ao Outro que estanque a nossa dor, porque supomos que ele sabe de nós. Porque supomos que ele tem linhas e fios e laços e amarras para nos costurar.

Ele não tem.